2.3.05
A Seara Desprezada
Para vermos como, nós outros, portugueses, temos desperdiçado valores, figuras, exemplos e oportunidades, eis um livro : Over The Edge of The World / Para Além do Fim do Mundo, que constitui mais um caso de óbvio aproveitamento em seara alheia : um ex-jornalista americano, Laurence Bergreen, que nunca se especializou em História, muito menos na dos Descobrimentos, veio a interessar-se pela proeza de Fernão de Magalhães e escreveu o que dizem ser um êxito de vendas, vulgo best-seller, sobre este nosso herói, estranhamente pouco valorizado pelos seus descendentes actuais.
Não posso ajuizar do valor do livro, porque ainda não o li, mas sei que suscitou enorme interesse e se transformou em grande êxito comercial, condição nem sempre equivalente a atestado de garantia da obra, como por de mais sabemos. Este caso, no entanto, não pôde deixar de me impelir a expressar alguns fundos e antigos sentimentos e preocupações quanto a certos traços de carácter da nossa gente do tempo presente.
Quase todos os portugueses conhecerão quem foi Cristóvão Colombo e o feito que o celebrizou, até porque viram o filme que sobre ele fizeram, há alguns anos, bem interpretado, reconheça-se, por Gerard Depardieu, quando se comemorou (1992), com pompa e circunstância, sem complexos, da parte de nuestros hermanos, o 5º centenário da 1ª viagem daquele navegador às Antilhas, terras a que ele, por erro de cálculo, chamou Índia, mais tarde também chamadas de Índias Ocidentais, por infuência do mesmo erro.
Por sinal, no regresso, o primeiro a receber a notícia do descobrimento foi o nosso D. João II, o Príncipe Perfeito, El Hombre, como lhe chamava Isabel, a Católica, e não, como seria de esperar, os Reis de Espanha, ao serviço de quem Colombo se colocara,como sucederia, de resto, com Magalhães, depois de haver aprendido a sua arte em Portugal e de aqui ter visto recusado apoio ao seu ambicioso, mas erróneo projecto.
Diz-se que D. João II, seguro e soberbo do seu saber, estribado no conhecimento de cosmógrafos e cartógrafos experimentados, lhe terá comunicado que aquilo que ele havia encontrado não era a Índia, como pretendia e, em todo o caso, o que quer que fosse que tivesse encontrado, a ele, D. João II, Rei de Portugal, lhe pertencia, por força do Tratado de Alcáçovas, então em vigor, que dividia o mundo por um paralelo passando pelas Canárias, atribuindo a Portugal, as terras descobertas ou a descobrir ao sul daquela linha e as a norte, a Espanha, com excepção dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, já anteriormente descobertos e povoados por Portugal.
D.João II mandou de imediato uma embaixada aos Reis Católicos e ordenou que se preparasse uma esquadra, sob o comando de D. Francisco de Almeida, futuro primeiro Vice-Rei da Índia, para que fosse tomar posse das ilhas recém-descobertas por Colombo, em nome da coroa portuguesa. Por via disso, rapidamente Fernando e Isabel pediram ao Papa Alexandre VI, um espanhol, a sua intercessão, o que o levou a gizar uma bula cheia de erros, que os portugueses rejeitaram e corrigiram, forjando o que viria a ser o Tratado de Tordesilhas, assinado nesta localidade, em 1494, em resultado de negociação directa com os monarcas espanhóis.
Por ele, ficaria o mundo descoberto ou a descobrir repartido entre os dois estados peninsulares, segundo um meridiano que passava a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, pertencendo a metade ocidental a Espanha e a oriental a Portugal.
Com esta correcção, obrada pelos negociadores portugueses, certamente sustentada num conhecimento científico então de vanguarda, haveria o Brasil, imenso e rico território, porventura já conhecido, em segredo de estado, de caber a Portugal. Aqui temos exemplo, de como é possível, com denodo e saber, lograr defender os interesses próprios, sem deixar que mãos alheias e cobiçosas os venham a captar para o seu lado.
Que bem precisados estamos nós hoje de evocar este magno acontecimento histórico.
Entretanto, quantos compatriotas nossos identificarão no presente a figura de Fernão de Magalhães e a sua notável aventura de exploração dos mares, ao serviço de uma comprovação científica, que importava fazer, por essa época, ao mesmo tempo que se obtinham ganhos comerciais diversos, com as terras e povos com que se estabeleciam relações, de acordo com a mentalidade dos povos europeus dos séculos xv e xvi.
Bastou que alguém se tivesse interessado e disposto a desenvolver alguma investigação, para que o nome de Fernão de Magalhães e a sua circum-navegação se tornassem mais conhecidos no mundo, ainda que por mão de um escritor norte-americano, que nem português, nem castelhano, nem italiano dominava, nem, obviamente, a história, a ciência e a literatura de qualquer destes países latinos.
Porque não fomos nós a fazê-lo, na actualidade ?
Julgo que no passado houve alguns autores portugueses que se dedicaram a estudar a biografia e o feito deste destemido navegador, nomeadamente o Visconde de Lagoa, em 1938. Latino Coelho, no final do século xix, escreveu a biografia de Vasco da Gama e Stefan Zweig, escritor austríaco, muito devotado a temas luso-brasileiros, a de Fernão de Magalhães.
Contemporaneamente, Luís Adão da Fonseca, em 1997, no âmbito das comemorações dos 500 anos do descobrimento marítimo para a Índia, por ocasião da Expo 98, de Lisboa, publicou uma biografia de Vasco da Gama, o forte capitão daquela empresa. É muito pouco, para tamanha importância das façanhas praticadas.
Outros autores nacionais terão ainda escrito esparsamente alguma coisa sobre Fernão Magalhães, como sobre outros navegadores portugueses, mas nenhum na actualidade se terá dado ao trabalho de elaborar uma completa biografia de Fernão de Magalhães : por desinteresse, por fastio, por complexos adquiridos, etc., o certo é que não o têm feito.
Desprezamos assim uma enorme seara que generosamente nos puseram diante dos olhos. Naturalmente que, por tanta e tão escusada cerimónia, outros vêm e virão e, sem esses complexos, colherão as sua fartas e amadurecidas espigas.
Nestes, como noutros pormenores relacionados com o nosso precioso e abundante material histórico, como poucos povos poderão aduzir a seu crédito, se vê o caminho que nos falta percorrer, para sabermos dignificar e honrar o legado dos que aqui nos precederam, nesta pequena faixa do extremo ocidental da Europa, «onde a terra se acaba e o mar começa», no dizer lapidar do nosso grande Camões.
Labor omnia vincit improbus / O trabalho persistente vence tudo ou Assim nos convém acreditar .
AV_Lisboa, 01 de Março de 2005
Não posso ajuizar do valor do livro, porque ainda não o li, mas sei que suscitou enorme interesse e se transformou em grande êxito comercial, condição nem sempre equivalente a atestado de garantia da obra, como por de mais sabemos. Este caso, no entanto, não pôde deixar de me impelir a expressar alguns fundos e antigos sentimentos e preocupações quanto a certos traços de carácter da nossa gente do tempo presente.
Quase todos os portugueses conhecerão quem foi Cristóvão Colombo e o feito que o celebrizou, até porque viram o filme que sobre ele fizeram, há alguns anos, bem interpretado, reconheça-se, por Gerard Depardieu, quando se comemorou (1992), com pompa e circunstância, sem complexos, da parte de nuestros hermanos, o 5º centenário da 1ª viagem daquele navegador às Antilhas, terras a que ele, por erro de cálculo, chamou Índia, mais tarde também chamadas de Índias Ocidentais, por infuência do mesmo erro.
Por sinal, no regresso, o primeiro a receber a notícia do descobrimento foi o nosso D. João II, o Príncipe Perfeito, El Hombre, como lhe chamava Isabel, a Católica, e não, como seria de esperar, os Reis de Espanha, ao serviço de quem Colombo se colocara,como sucederia, de resto, com Magalhães, depois de haver aprendido a sua arte em Portugal e de aqui ter visto recusado apoio ao seu ambicioso, mas erróneo projecto.
Diz-se que D. João II, seguro e soberbo do seu saber, estribado no conhecimento de cosmógrafos e cartógrafos experimentados, lhe terá comunicado que aquilo que ele havia encontrado não era a Índia, como pretendia e, em todo o caso, o que quer que fosse que tivesse encontrado, a ele, D. João II, Rei de Portugal, lhe pertencia, por força do Tratado de Alcáçovas, então em vigor, que dividia o mundo por um paralelo passando pelas Canárias, atribuindo a Portugal, as terras descobertas ou a descobrir ao sul daquela linha e as a norte, a Espanha, com excepção dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, já anteriormente descobertos e povoados por Portugal.
D.João II mandou de imediato uma embaixada aos Reis Católicos e ordenou que se preparasse uma esquadra, sob o comando de D. Francisco de Almeida, futuro primeiro Vice-Rei da Índia, para que fosse tomar posse das ilhas recém-descobertas por Colombo, em nome da coroa portuguesa. Por via disso, rapidamente Fernando e Isabel pediram ao Papa Alexandre VI, um espanhol, a sua intercessão, o que o levou a gizar uma bula cheia de erros, que os portugueses rejeitaram e corrigiram, forjando o que viria a ser o Tratado de Tordesilhas, assinado nesta localidade, em 1494, em resultado de negociação directa com os monarcas espanhóis.
Por ele, ficaria o mundo descoberto ou a descobrir repartido entre os dois estados peninsulares, segundo um meridiano que passava a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, pertencendo a metade ocidental a Espanha e a oriental a Portugal.
Com esta correcção, obrada pelos negociadores portugueses, certamente sustentada num conhecimento científico então de vanguarda, haveria o Brasil, imenso e rico território, porventura já conhecido, em segredo de estado, de caber a Portugal. Aqui temos exemplo, de como é possível, com denodo e saber, lograr defender os interesses próprios, sem deixar que mãos alheias e cobiçosas os venham a captar para o seu lado.
Que bem precisados estamos nós hoje de evocar este magno acontecimento histórico.
Entretanto, quantos compatriotas nossos identificarão no presente a figura de Fernão de Magalhães e a sua notável aventura de exploração dos mares, ao serviço de uma comprovação científica, que importava fazer, por essa época, ao mesmo tempo que se obtinham ganhos comerciais diversos, com as terras e povos com que se estabeleciam relações, de acordo com a mentalidade dos povos europeus dos séculos xv e xvi.
Bastou que alguém se tivesse interessado e disposto a desenvolver alguma investigação, para que o nome de Fernão de Magalhães e a sua circum-navegação se tornassem mais conhecidos no mundo, ainda que por mão de um escritor norte-americano, que nem português, nem castelhano, nem italiano dominava, nem, obviamente, a história, a ciência e a literatura de qualquer destes países latinos.
Porque não fomos nós a fazê-lo, na actualidade ?
Julgo que no passado houve alguns autores portugueses que se dedicaram a estudar a biografia e o feito deste destemido navegador, nomeadamente o Visconde de Lagoa, em 1938. Latino Coelho, no final do século xix, escreveu a biografia de Vasco da Gama e Stefan Zweig, escritor austríaco, muito devotado a temas luso-brasileiros, a de Fernão de Magalhães.
Contemporaneamente, Luís Adão da Fonseca, em 1997, no âmbito das comemorações dos 500 anos do descobrimento marítimo para a Índia, por ocasião da Expo 98, de Lisboa, publicou uma biografia de Vasco da Gama, o forte capitão daquela empresa. É muito pouco, para tamanha importância das façanhas praticadas.
Outros autores nacionais terão ainda escrito esparsamente alguma coisa sobre Fernão Magalhães, como sobre outros navegadores portugueses, mas nenhum na actualidade se terá dado ao trabalho de elaborar uma completa biografia de Fernão de Magalhães : por desinteresse, por fastio, por complexos adquiridos, etc., o certo é que não o têm feito.
Desprezamos assim uma enorme seara que generosamente nos puseram diante dos olhos. Naturalmente que, por tanta e tão escusada cerimónia, outros vêm e virão e, sem esses complexos, colherão as sua fartas e amadurecidas espigas.
Nestes, como noutros pormenores relacionados com o nosso precioso e abundante material histórico, como poucos povos poderão aduzir a seu crédito, se vê o caminho que nos falta percorrer, para sabermos dignificar e honrar o legado dos que aqui nos precederam, nesta pequena faixa do extremo ocidental da Europa, «onde a terra se acaba e o mar começa», no dizer lapidar do nosso grande Camões.
Labor omnia vincit improbus / O trabalho persistente vence tudo ou Assim nos convém acreditar .
AV_Lisboa, 01 de Março de 2005
Comments:
<< Home
Caro António, como aprendi com este texto! Não, a seara não estará perdida, pelo menos enquanto houver um António Viriato a protegê-la.
Li seus textos abaixo sobre o final da campanha eleitoral e o outro sobre Tony Blair. Não me sinto à altura para comentá-los, até porque esses assuntos envolvendo políticos atuais não só me aborrecem como me irritam profundamente (que fique bem claro que não são seus textos que me aborrecem, ao contrário, eles elucidam).
Obrigada, mais uma vez e sempre, por seus comentários, principalmente pelos cumprimentos por ocasião do aniversário de minha mãe.
Finalmente, com atraso, consegui publicar aqueles trechos musicais cantados - agora, todo o canto do conto (texto 199) está exposto, com as desafinações e tudo (aqueles trechos de carnaval).
Até em Música eu desafino. Que dirá nesses assuntos dos quais você é um mestre.
Fortíssimo ABRAÇO.
Bisbilhoteira.
www.bisbilhotices.blogger.com.br
Li seus textos abaixo sobre o final da campanha eleitoral e o outro sobre Tony Blair. Não me sinto à altura para comentá-los, até porque esses assuntos envolvendo políticos atuais não só me aborrecem como me irritam profundamente (que fique bem claro que não são seus textos que me aborrecem, ao contrário, eles elucidam).
Obrigada, mais uma vez e sempre, por seus comentários, principalmente pelos cumprimentos por ocasião do aniversário de minha mãe.
Finalmente, com atraso, consegui publicar aqueles trechos musicais cantados - agora, todo o canto do conto (texto 199) está exposto, com as desafinações e tudo (aqueles trechos de carnaval).
Até em Música eu desafino. Que dirá nesses assuntos dos quais você é um mestre.
Fortíssimo ABRAÇO.
Bisbilhoteira.
www.bisbilhotices.blogger.com.br
Sempre que por aqui passo, aprendo e levo comigo um pouco da história de Portugal quer seja da atualidade ou de um passado grandioso. Muito obrigada por ensinar-me um pouco de Portugal.
Semeadora
www.trigal.bolgger.com.br
Semeadora
www.trigal.bolgger.com.br
Sempre que por aqui passo, aprendo e levo comigo um pouco da história de Portugal quer seja da atualidade ou de um passado grandioso. Muito obrigada por ensinar-me um pouco de Portugal.
Semeadora
www.trigal.bolgger.com.br
Semeadora
www.trigal.bolgger.com.br
Passei por cá, vinda dos caminhos da blogoesfera, e vou fazer do seu blog um dos meus cantos de leitura e de aprendizagem.
Ler, é para mim um prazer; ler o que escreve, da forma como o faz, é um prazer redobrado.
Obrigada pelos momentos que aqui vou passar.
Isabel Magalhães
P.S. - Se me permite gostaria de aqui deixar o seguinte título:
OS MAGALHÃES
Sete Séculos de Aventura
Manuel Villas-Boas
ISBN 972-33-1397-9
Ler, é para mim um prazer; ler o que escreve, da forma como o faz, é um prazer redobrado.
Obrigada pelos momentos que aqui vou passar.
Isabel Magalhães
P.S. - Se me permite gostaria de aqui deixar o seguinte título:
OS MAGALHÃES
Sete Séculos de Aventura
Manuel Villas-Boas
ISBN 972-33-1397-9
What a great site Land rover michigan hydrooxycut hardcore reviews Laser tattoo removal plymouth meeting faucets Beaverton mitsubishi http://www.used-audi-a8.info radeon 7500 graphics card drivers Spela scrabble over internet south melbourne soccer club Cheap price list alprazolam generic xanax Starting effexor 2b tapering off zoloft Cornell hockey Enviromentally friendly youth furniture
Enviar um comentário
<< Home